O corpo carrega duas caixas. Na mão direita, mão da destreza e do
trabalho, ele leva uma caixa de ferramentas. E na mão esquerda, mão do
coração, ele leva uma caixa de brinquedos. Ferramentas são melhorias do
corpo. Os animais não precisam de ferramentas porque seus corpos já são
ferramentas. Eles lhes dão tudo aquilo de que necessitam para
sobreviver.
Como são desajeitados os seres humanos quando comparados com os animais!
Veja, por exemplo, os macacos. Sem nenhum treinamento especial eles
tirariam medalhas de ouro na ginástica olímpica. E os saltos das pulgas e
dos gafanhotos!
Já prestou atenção na velocidade das formigas? Mais velozes a pé,
proporcionalmente, que os bólidos de F-1! O vôo dos urubus, os buracos
dos tatus, as teias das aranhas, as conchas dos moluscos, a língua
saltadora dos sapos, o veneno das taturanas, os dentes dos castores.
Nossa inteligência se desenvolveu para compensar nossa incompetência
corporal. Inventou melhorias para o corpo: porretes, pilões, facas,
flechas, redes, barcos, jegues, bicicletas, casas... Disse Marshall MacLuhan?
corretamente que todos os "meios" são extensões do corpo. É isso que
são as ferramentas, meios para viver. Ferramentas aumentam a nossa
força, nos dão poder. Sem ser dotado de força de corpo, pela
inteligência o homem se transformou no mais forte de todos os animais, o
mais terrível, o maior criador, o mais destruidor. O homem tem poder
para transformar o mundo num paraíso ou num deserto.
A primeira tarefa de cada geração, dos pais, é passar aos filhos, como
herança, a caixa de ferramentas. Para que eles não tenham de começar da
estaca zero. Para que eles não precisem pensar soluções que já existem.
Muitas ferramentas são objetos: sapatos, escovas, facas, canetas,
óculos, carros, computadores. Os pais apresentam tais ferramentas aos
seus filhos e lhes ensinam como devem ser usadas. Com o passar do tempo,
muitas ferramentas, muitos objetos e muitos de seus usos se tornam
obsoletos. Quando isso acontece, eles são retirados da caixa. São
esquecidos por não terem mais uso. As meninas não têm de aprender a
torrar café numa panela de ferro, e os meninos não têm de aprender a
usar arco-e-flecha para encontrar o café da manhã. Somente os velhos
ainda sabem apontar os lápis com um canivete...
Outras ferramentas são puras habilidades. Andar, falar, construir. Uma
habilidade extraordinária que usamos o tempo todo, mas de que não temos
consciência, é a capacidade de construir, na cabeça, as realidades
virtuais chamadas mapas. Para nos entendermos na nossa casa, temos de
ter mapas dos seus cômodos e mapas dos lugares onde as coisas estão
guardadas. Fazemos mapas da casa. Fazemos mapas da cidade, do mundo, do
universo. Sem mapas, seríamos seres perdidos, sem direção.
A ciência é, ao mesmo tempo, uma enorme caixa de ferramentas e, mais
importante que suas ferramentas, um saber de como se fazem as
ferramentas. O uso das ferramentas científicas que já existem pode ser
ensinado. Mas a arte de construir ferramentas novas, para isso há de
saber pensar. A arte de pensar é a ponte para o desconhecido. Assim, tão
importante quanto a aprendizagem do uso das ferramentas existentes
—coisa que se pode aprender mecanicamente— é a arte de construir
ferramentas novas. Na caixa das ferramentas, ao lado das ferramentas
existentes, mas num compartimento separado, está a arte de pensar.
(Fico a pensar: o que as escolas ensinam? Elas ensinam as ferramentas
existentes ou a arte de pensar, chave para as ferramentas inexistentes? O
problema: os processos de avaliação sabem como testar o conhecimento
das ferramentas. Mas que procedimentos adotar para avaliar a arte de
pensar?)
Assim, diante da caixa de ferramentas, o professor tem de se perguntar:
"Isso que estou ensinando é ferramenta para quê? De que forma pode ser
usado? Em que aumenta a competência dos meus alunos para cada um viver a
sua vida?". Se não houver resposta, pode estar certo de uma coisa:
ferramenta não é.
Mas há uma outra caixa, na mão esquerda, a mão do coração. Essa caixa
está cheia de coisas que não servem para nada. Inúteis. Lá estão um
livro de poemas da Cecília Meireles, a "Valsinha" de Chico Buarque, um
cheiro de jasmim, um quadro de Monet, um vento no rosto, uma sonata de
Mozart, o riso de uma criança, um saco de bolas de gude... Coisas
inúteis. E, no entanto, elas nos fazem sorrir. E não é para isso que se
educa? Para que nossos filhos saibam sorrir? Na próxima vez, a gente
abre a caixa dos brinquedos...
Rubem Alves, "soixante-dix", é educador. Escreveu, entre outros, "Livro
sem Fim" (Edições ASA), publicado em Portugal, e "Se Eu Pudesse Viver
Minha Vida Novamente..." (Verus).
****Fotografia e a arte de Pensar
![]() |
*Elliott Erwitt |
Nenhum comentário:
Postar um comentário