O
heroísmo da visão
Os primeiros
fotógrafos falavam como se a câmera fosse uma máquina copiadora; como se,
apesar de serem manipuladas por pessoas, fossem as câmeras que vissem. A
invenção da fotografia foi acolhida como um meio para aliviar a sobrecarga da
sempre crescente acumulação de informações e impressões sensoriais. Fox Talbot
(...) [diz] que a idéia da fotografia lhe surgiu em 1833, numa viagem à Itália,
viagem que se tinha tornado obrigatória na Inglaterra para os herdeiros ricos,
quando fazia alguns esboços da paisagem no Lago Como. Ao desenhar com a ajuda
da câmera escura, um dispositivo que projetava a imagem sem a fixar, foi
levado a refletir, diz ele, "sobre a inimitável beleza dos quadros que a
natureza pinta e que a lente da câmera faz incidir no papel 'e a perguntar-se'
se seria possível que estas imagens naturais pudessem ser impressas de um modo
duradouro". A câmera insinuou-se a Fox Talbot como um novo modo de
registro cujo encanto derivava precisamente da sua impessoalidade, pois
registrava uma imagem "natural", ou seja, uma imagem que se formava
"pela ação exclusiva da luz, sem qualquer auxílio do lápis do
artista".
O fotógrafo era
considerado um observador arguto mas imparcial: um escritor e não um poeta.
Mas, como rapidamente se descobriu que ninguém tira a mesma fotografia da mesma
coisa, a suposição de que as câmeras proporcionavam uma imagem impessoal e
objetiva deu lugar à verificação de que as fotografias são uma evidência, não
só do que ali está mas do que alguém vê, não só um registro mas uma avaliação
do mundo. Tornou-se claro que não havia apenas uma atividade simples e unitária
chamada visão (registrada e suportada pela câmera), mas também "a visão
fotográfica", que era simultaneamente uma nova maneira de as pessoas verem
e uma nova forma de atividade.
(...) Porém,
rapidamente os viajantes com as suas câmeras assimilaram um leque de assuntos
mais vasto do que os lugares famosos e as obras de arte. A visão fotográfica
significava uma aptidão para descobrir beleza no que toda a gente vê mas
menospreza por demasiado vulgar. Supunha-se que os fotógrafos não se deviam
limitar a ver o mundo tal como ele é, incluindo as suas já aclamadas
maravilhas; deviam criar interesse, através de novas decisões visuais.
Desde a invenção
das câmeras que há um heroísmo peculiar que se espalha pelo mundo: o heroísmo
da visão. A fotografia inaugurou um novo modelo de atividade independente que
permite a cada pessoa exibir uma determinada sensibilidade, única e ávida. Os
fotógrafos partiram para os seus safáris culturais, sociais e científicos à
procura de Imagens surpreendentes. Iriam apresar o mundo, por maior que fosse
a paciência e desconforto exigidos por essa modalidade de visão ativa,
avaliativa, aquisitiva, gratuita. Afred Stieglitz relata orgulhosamente que
agüentou três horas durante uma tempestade de neve, em 22 de fevereiro de 1893,
"à espera do momento exato" para tirar a sua célebre fotografia
"Fifth Avenue, Winter" [5.^ Avenida, Inverno]; o momento exato é
aquele em que se podem ver as coisas (especialmente as que toda a gente já viu)
de uma maneira nova. Para a imaginação popular, essa busca transformou-se na
imagem de marca do fotógrafo. Nos anos 20, o fotógrafo tinha-se tornado um
herói moderno, tal como o aviador e o antropólogo, sem ter necessariamente de
deixar a sua terra. Os leitores da imprensa popular eram convidados a
juntarem-se "ao nosso fotógrafo" numa "viagem de
descoberta", visitando novos domínios como "o mundo visto de
cima", "o mundo visto através da lente ampliadora", "as
belezas do quotidiano", "o universo invisível", "o milagre
da luz", "a beleza das máquinas", a imagem que pode ser
"encontrada nas ruas". A apoteose da vida quotidiana e o gênero de
beleza que só as câmeras revelam — um ângulo da realidade material que o olhar
não pode ver ou não pode normalmente isolar, ou uma panorâmica tirada, por
exemplo, a partir de um avião — são as principais metas da campanha do
fotógrafo. Por momentos, o grande plano pareceu ser o método visual mais original
da fotografia. Os fotógrafos verificaram que, quanto mais de perto captavam a
realidade, mais magníficas eram as formas que surgiam. Nos princípios da
década de 40 do século passado, o versátil e engenhoso Fox Talbot não se
limitou a compor fotografias a partir dos gêneros da pintura — retrato, cenas
domésticas, paisagens urbanas, paisagens rurais, naturezas mortas —, mas
utilizou também a sua câmera para fotografar uma concha, as asas de uma
borboleta (ampliadas com a ajuda de um microscópio solar), duas prateleiras de
livros do seu escritório. Mas essas imagens são ainda reconhecíveis como uma
concha, asas de borboleta e livros. Quando a visão vulgar foi ainda mais
desrespeitada e o objeto, isolado dos seus contextos, se tornou abstrato,
surgiram novas convenções sobre a beleza. O belo passou a ser justamente
aquilo que os olhos não vêem ou não podem ver: essa visão fragmentada,
desorganizada que só a câmera proporciona.
SONTAG, Susan. Ensaios
sobre fotografia. Lisboa, Don Quixote, 1986. p. 84-87.
"Minhas" visões fotográficas...











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